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segunda-feira, 1 de junho de 2015

EPILEPSIA: O Grito do Pavão


“O rosto  descomposto, ele revirava os olhos, 
 nos quais apareciam uma rede de veias sangrentas,
 e a espuma em sua barba cerrada causava repugnância”...
 (A Fúria de Hércules – Vs. 790 – 830)

Na antiguidade clássica, a epilepsia já era conhecida, e Hipócrates, o pai da medicina, afirmava que sua causa estava no cérebro, desmistificando em seu livro: “Doença Sagrada”, a ideia de uma doença relacionada aos deuses e espíritos malignos.

Hércules, o semideus da mitologia grega, filho de Zeus e da mortal Alcmena, portava o morbus hérculeus (mal hercúleo), referência à epilepsia na tragédia grega.

Passaram-se os séculos, mas as desinformações e preconceitos permanecem.

Pensar em epileptologia nos remete a uma doença crônica, manifestada por descargas elétricas de uma ou mais áreas do nosso cérebro, e que tem um efeito tão intenso em um punhado de neurônios, e nos quais os sintomas obedecem a uma variedade de fatores etiológicos, no entanto, a epilepsia essencial ou idiopática não teria necessariamente um mecanismo patogênico definido.


Sabemos que nem toda crise é convulsiva, assim como nem toda convulsão é epiléptica, daí a importância na distinção destes eventos epileptiformes.

Neurocientistas observaram através das estruturas e funções cerebrais, diferenciações das epilepsias, e lesões no lobo frontal é o tipo mais comum de epilepsia em humanos.

A epilepsia é considerada um transtorno neurológico sério, muito embora seja  tratável esses insultos agudos que acometem o SNC (Sistema Nervoso Central), e que de certa forma, estigmatiza seus portadores, seja pela falta de informações, por ideias preconcebidas ou mesmo pelo feitio assustador das crises convulsivas.

As manifestações neurológicas são evidentes, basta olhar tais convulsões, mas é possível também, evidenciarmos os  sintomas psíquicos, através do próprio ataque epiléptico, que pode ser comparado a uma psicose de curta duração.

As regiões corticais são afetadas em graus variáveis, sendo os danos cerebrais similares ao da hipóxia grave e da isquemia.

Embora a epilepsia ainda não tenha cura, podemos falar em controle das crises, com drogas anti-epilépticas ou anti-convulsivantes, numa combinação monitorada entre eficácia e tolerabilidade, potência da terapia medicamentosa e efeitos colaterais, buscando sempre equacionar tais fatores com suporte psicólógico.

O anteceder da crise convulsiva é precedida pela emissão de um grito rouco, comparado ao grito do pavão, um som penetrante e desagradável, no entanto, se a glote está contraída, devido á saída brusca do ar, este som alarmante poderá não ocorrer.

A pele empalidece, a queda sobrevém de forma tempestiva, congestionando a face, iniciando-se assim, a fase tônica do ataque epiléptico, seguida da fase hipertônica, quando a musculatura se distende: braços esticados, pernas estendidas, o tronco opistótono (dobrado para trás), dedos flexionados sobre a mão, com o polegar em posição de adução e flexão extrema, encoberto pelos demais dedos.

A língua se projeta para fora da cavidade bucal ou mesmo enrolando-se, e a cabeça em movimentos rítmicos, para trás e para cima, sendo provável nesta fase tônica, a emissão involuntária de urina, fezes e líquido seminal, o que caracteriza sintomas autonômicos, assim também como aumento da salivação, sudorese, vômitos, entre outros, e que fazem parte do quadro clínico.

Após aproximadamente uns trinta segundos, instala-se a fase clônica de movimentos convulsivos, e que se intensificam deformando a fisionomia, em uma espécie de esgar, devido ao processo de agitação em clonismo dos músculos faciais.

Na fase tônica, o pulso que era pequeno, agora torna-se cheio, com uma respiração estertorosa,  um suor viscoso cobrindo a pele e  tornando-a pegajosa.

A fase  clônica  tem uma duração média de meio a um minuto, seguida de torpor, que poderá ser convertido em sono profundo, onde se ouve roncos e sibilos frequentes, quando é possível  observar a palidez da pele, e isto poderá durar de minutos a horas.


Quando ocorre o despertar, este se apresenta confuso, com amnésia lacunar, obnubilação mental, tonteiras e ou cefaléia.

Quanto às características psíquicas, é possível verificar lentificação do pensamento e repetição de ideias, entorpecimento e comportamento automatizado, com desorientação tempo/espaço, uma espécie de alheamento à realidade.

Outra característica psíquica que antecede ao ataque convulsivo, é a aura, e que tem feitio sensorial, sensitivo e motor, manifestados por espasmos, tremores, carreira brusca, visão das coisas na cor vermelha, imagens duplicadas (diplopia), sensações de dor, calor, frio, sons, alucinações visuais, gustativas, olfativas, táteis e cinestésicas.

A aura é sempre a mesma para a pessoa e tem caráter premonitório da crise epiléptica, antecedendo a tempestade que se aproxima, ou seja, o ataque convulsivo.

A medicina legal nos assinala casos de impulsos epilépticos imprevistos, sem motivos e violentos, e que não são registrados como lembrança ou memória pelo individuo.

A psiquiatria forense reconhece que durante as crises e pós- crise, é possível  verificar a ocorrência ou a produção de delitos, seja por acidentes de trânsito, através das crises de ausência (petit mal) ou convulsivas, como no caso do furor epiléptico, onde se registra  uma série de movimentos motores repetitivos e de extrema violência.

A questão é delicada e complexa, e não poderemos deixar de reconhecer que as alterações elétricas neurais, também processam mudanças comportamentais e na personalidade, seja por automatismo pós-ictais, seja por danos cerebrais, devido a crises frequentes.

Na verdade os transtornos epileptiformes da personalidade, são produzidos de forma secundária às alterações funcionais do SNC (Sistema Nervoso Central), do que exclusivamente emocionais.


Não podemos negar que a epilepsia é um distúrbio cerebral que condiciona consequências cognitivas, psicológicas, emocionais e neurobiológicas para o seu portador, logicamente levando-se em conta a frequência das crises, sua duração e a região cerebral acometida.

É provável uma predisposição das pessoas portadoras de epilepsia, para estados depressivos, e isto é compreensível devido à carga emocional acentuada,  associada às dificuldades impostas pela doença, disfunções da neuroquímica cerebral, aliadas ao estigma social e dificuldades psicológicas do indivíduo.

Esta somatória de condições  desfavoráveis, torna-se um terreno fértil para a prevalência de transtornos depressivos, e que são significativos na epilepsia, sendo a sua ocorrência maior do que na população geral.

É imprescindível a necessidade, e importância do tratamento para a depressão em portadores de epilepsia, uma comorbidade que é comumente subdiagnosticada e pouco tratada.

Não devemos menosprezar a questão do suporte psicológico para o enfrentamento dos medos e dúvidas do paciente epiléptico, níveis de ansiedade, isolamento social e afetivo, que permeia a vida diária de seus portadores.

O limiar entre o normal e o patológico, nem sempre está evidente no que se refere ao comportamento e personalidade, e assim nossos diagnósticos são basicamente sindrômicos, e que de certa forma define nossas condutas e o prognóstico.

Sintomas comportamentais, cognição, doenças neurológicas, cursam com sintomas variados, e que se localizam em um substrato anatômico e fisiológico, e que por sua vez não exclui o psicológico e emocional, lembrando  que é possível a ocorrência também de distúrbios psiquiátricos, e caso existam, estes dependem de uma vulnerabilidade individual para sua manifestação.

O efeito da doença neurológica, como é o caso da epilepsia sobre as estruturas do córtex cerebral, fornece um substrato para a compreensão de como dados internos afetivos/emocionais, e dados sensoriais/neurológicos, ativam os diversos sistemas de estruturas subcorticais e límbicas.

Existe um fenômeno, que eu não poderia deixar de mencionar, que é muito comum e prevalente em portadores de epilepsia, é a sensação Déjà vu (termo que significa: já visto, em francês).

Déjà  vu, são impressões, sensações e reações psicológicas estranhas de vivências, de lugares, pessoas e situações, que são processadas de forma  independente,  sem uma memória de arquivo real para acioná-las.

A condição de Déjà vu, é explicada, quando partes eletricamente estimuladas  do lobo temporal, aciona aquela sensação de familiaridade, com tudo que o indivíduo encontra pela frente, ou mesmo  de forma seletiva, principalmente os portadores de epilepsia, que buscam através da mente, em seus arquivos de memórias neuronais, aquilo que acreditam já terem visto ou vivenciado anteriormente, no entanto, não há registro no arquivo de memórias no lobo temporal, este espetacular guardião de nossas memórias mais primitivas.

Vamos parando por aqui, por enquanto, mas sem esquecer que nada substitui o raciocínio clínico, e como observou tão bem, o grande físico francês, Henri Poincaré: “É pela lógica que nós provamos; mas é pela intuição que descobrimos”.
 
Déjà vu!

Deijone do Vale
Neuropsicóloga