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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Vida de Terapeuta



É enigmático como certas palavras ou acontecimentos entram em nossa mente e permanecem como o retinir dos sinos de uma catedral. Por quem os sinos dobram? Eles dobram por ti... Ernest Hemingway, senti saudades de quando li o seu livro, já  faz  muito  tempo...

Anos atrás atendi uma paciente portadora da Síndrome de Marfan.  Você sabe o que caracteriza a Síndrome de Marfan?

A Síndrome de Marfan é uma doença, uma desordem do tecido conjuntivo provocada pela mutação genética do gen do cromossoma 15 da proteína fibrilina, presente nos ligamentos que unem os ossos nas articulações, seguram as lentes dos olhos (cristalino), e também está presente na camada interna das artérias (principalmente a artéria Aorta).

O nome da síndrome refere-se ao pediatra francês que a descreveu em 1896, e as principais manifestações clínicas incidem sobre os sistemas esquelético, cardíaco e ocular: estatura elevada, deformidade toráxica, escoliose, braços e mãos alongados; prolapso da válvula mitral e dilatação da veia Aorta; miopia e luxação do cristalino.

Uma pessoa afetada pela Síndrome de Marfan pode ter todos ou alguns destes sintomas.

Pois bem, a minha paciente portava tal síndrome, era jovem, bela, desejava ardentemente viver, estava grávida de sonhos, queria ser professora, ensinar crianças.

Seus olhos negros e profundos esquadrinhavam os meus perplexos, diante daquela vida num leito de hospital.

Sua mão pálida, enorme, que eu mal conseguia segurar entre as minhas, estava úmida, seus pés alongados sobressaíam do lençol, aquilo tocou-me a alma.

Murmurou-me: “Se eu sarar, serei professora, gosto de ensinar crianças”.

Sua voz se instalou dentro de mim e me acompanha até hoje e em muitas ocasiões pareço escutá-la...

Identifico-me com ela, também gosto de ensinar, ela morreu na semana seguinte, lamento sua partida precoce, lamento não ter-lhe falado novamente.

Nestes anos de clínica tenho estado cada vez mais apaixonada pelo desafio que é o atendimento psicológico, o set terapêutico é um campo minado de emoções.

Caminhar, adentrar o mundo do paciente, vê-los em sua plenitude, compreendê-los, manter um olhar empático, verificar inúmeras vezes os meus pressupostos, é instigador.

Andar com os sapatos do outro? ou andar nas suas pegadas? É desafiante!

Empatia pressupõe abertura frente a eventos abomináveis, lascivos, violentos, não importa é necessário suspender o nosso a priori para estabelecer um relacionamento genuíno.

Creio que nós terapeutas somos cuidadores do desespero humano e também de muitos sonhos, projetos e esperanças.

É um privilégio a vida de terapeuta, eu encontrei  no meu trabalho o que amo, fonte inesgotável para meus artigos e ainda acrescenta um significado inestimável à minha própria vida.

Outro dia mesmo, atendi a um adolescente, este veio ao consultório após dois anos de terapia intercalada e longos períodos afastado. 

Chegou com um violão enorme nas costas, lindo, sorridente, o óbvio: veio para uma sessão, veio cantar para mim, e realmente cantou e me encantou.

Imagine  a cena: cantou em inglês uma canção de uma banda britânica e antes de começar a cantar me pediu água para beber e em seguida dedilhou seu violão e com uma voz firme, afinada, me impressionou com o seu canto.

Fechei meus olhos para ouvi-lo melhor, a canção falava de “trovão de lágrimas”, isto me soou muito sugestivo, e a sua voz exprimia sentimento, paixão, percebi na hora o feedback desse querido paciente e pude observar ao vivo e a cores o seu crescimento pessoal e emocional.

Aí pensei: Como é possível guiarmos o outro no complexo de estruturas profundas que é a mente humana e a existência...

Sou uma apaixonada, é uma honra poder compartilhar com o paciente seus segredos, sonhos, anseios, medos e angústias e juntos construirmos em autoconhecimento e percepção.

Somos guardiões de segredos às vezes bem dolorosos e isto me tornou alguém mais paciente e gentil, mais compassiva com os outros e comigo.

Como terapeuta sou desafiada intelectualmente constantemente e porque não dizer também espiritualmente.

Aprendi a transcender ao olhar para o outro e fazer contato com a sua necessidade do momento.

Aprendi a dialogar mais do que polemizar, aprendi a estar presente e olhar com amplitude no sentido da graça, da benevolência e da lealdade para com o outro, possibilitando o encorajamento e promovendo a auto-percepção.

É  mais prazer que fardo, aprendi a fazer menos julgamentos e a ter mais compaixão.

Sempre me recordo de Erich Fromm que frequentemente citou a declaração de  Terêncio, de dois mil anos atrás e ainda tão atual: “Sou humano, e nada que é humano me é estranho”.

Deijone do Vale
Neuropsicóloga

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